10/12/2018 as 09:01

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A montagem do novo ministério é um pandemônio, um samba do crioulo doido ou uma comédia pastelão?



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No domingo maldito, apurados os votos e consumada a desgraça brasileira, sai caminhando pela cidade, numa noite em que a São Paulo da garoa parecia reviver, como se chorasse nosso infortúnio. Precisava de ar puro (sentia-me sufocar no meu apê) e queria reavaliar as perspectivas, que de um momento para outro haviam se tornado tão sombrias.


Não havia base para boas projeções de cenários, salvo as de que:
— nada de mais grave aconteceria antes da posse, portanto tínhamos dois meses para nos preparar;
— o novo governo tentará atuar dentro da ordem constitucional por algum tempo e só depois de fracassar é que as soluções extralegais vão começar a ser cogitadas;
— os identitários da periferia e dos grotões, devido à pouca visibilidade na mídia do que por lá acontece, vão correr perigo desde o dia 1º de janeiro, pois turbas alimentadas com ódio não se detêm apenas porque seu mito ganhou a eleição (tendem, isto sim, a crer que poderão tocar o terror impunemente).
Desde então, as perspectivas foram se aclarando e já se pode ir além:
— a tentativa de subjugarem a universidade e imporem limites obscurantistas ao pensamento, à arte e à cultura já começou, com a guerra cultural tendendo a ser das mais acirradas;
— estudantes, intelectuais e artistas são os que mais rapidamente estão se organizando para resistirem ao macartismo à brasileira;
— a sociedade civil, afastado o espantalho do lulismo, tende a unir-se em peso contra o retrocesso político e cultural;
— o STF afirmou sua independência ao impedir as blitze intimidatórias contra o ensino superior e o estupro da autonomia universitária (seu novo desafio deverá ser o de frustrar em definitivo as tentativas ilegais de entrega à Itália do escritor Cesare Battisti, residente legal no Brasil (conforme explico aqui); e
— os indícios provenientes dos bastidores da caserna nos dão a perceber que as Forças Armadas são avessas à ideia de extrapolarem seu papel constitucional, não se dispondo, pelo menos no momento, a endossar aventuras extemporâneas.


O certo é que o novo governo terá sofrido enorme desgaste prévio ao ser empossado, pois a montagem do ministério está sendo algo entre um pandemônio, um samba do crioulo doido e uma comédia de pastelão.


Na última categoria, destaque para o diplomata praticamente desconhecido que criou há dois meses um blog reafirmando com linguajar pernóstico todas as idiossincrasias ultradireitistas de Bolsonaro – a ponto de ser chamado pelo grande Clóvis Rossi de um “cabo Daciolo com alguns livros a mais” – e conseguiu, apoiado por Olavo de Carvalho, dar um chapéu nos maiorais do Itamaraty, que agora prometem despejar um caminhão de melancias em cima dele.


E o incrível governo Brancaleone em gestação terá de convencer o Congresso Nacional a aprovar medidas muito impopulares, a reforma da Previdência em primeiro lugar.


Tanto na Câmara quanto no Senado, precisará da anuência de três quintos dos parlamentares. Como a conseguirá? Tem tantos cargos assim para distribuir? Vai recorrer aos velhos esquemas de corrupção que prometeu combater?


O certo é que deputadores e senadores precisarão de alguma motivação muito especial para colocarem suas reeleições em perigo, pois sabem muito bem que as listas dos responsáveis por uma eventual vitória do governo infestarão a internet nos próximos pleitos.


Se não conseguir entregar o que os donos do Brasil dele exigem, o novo governo perderá seu maior sustentáculo. E aí chegaríamos a um cenário futuro que neste momento me parece ser o mais provável: o de um presidente tolhido pelo Congresso e pelo Supremo, tentando romper o impasse mediante um autogolpe.


Talvez até em agosto de 2019, para seguir fielmente os passos de Jânio Quadros, o antecessor com quem Jair Bolsonaro mais se parece, em tudo e por tudo.

Celso Lungaretti/jornalista, escritor e ex-preso político