04/01/2019 as 08:09

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2019: O risco da esquerda McNamara



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“A coisa humana normal a se fazer é pensar que seu inimigo pensa como você. Há uma história, apócrifa, que quando McNamara queria saber o que Ho Chi Minh estava pensando, ele entrevistava a si mesmo.”


“Então se torna um problema porque você tenta enviar mensagens que são racionais baseadas na sua noção de racionalidade, mas que nada têm a ver com a definição de racionalidade do outro lado. Então o que é irracional para nós, é totalmente racional para o outro lado.”


Estas palavras são de James Willbanks, conselheiro do exército norte americano, sobre os problemas enfrentados pelos EUA na Guerra do Vietnã e os limites do raciocínio do então secretário de defesa norte americano, Robert McNamara.


A eleição de Bolsonaro é uma ruptura com o sistema de símbolos, códigos e valores que prevaleceram na política nas últimas décadas. Foi a derrota do “politicamente correto”. Suas atitudes, que parecem escandalosas, são consumidas com naturalidade por seus eleitores. “Ho Chi Minh e McNamara” vivem em racionalidades distintas.


O Capitão rompeu com o presidencialismo de coalizão tão criticado pela esquerda “raiz-cheirosa”. Sinaliza ainda o fim do tripé macroeconômico criado por FHC e mantido por Lula e Dilma.


Paulo Guedes defende privatizar a saúde e a educação e distribuir vouchers para os excluídos. Os mais pobres vão achar ruim cobrar mensalidade da classe média que pagou caros cursinhos e ocupa as vagas mais disputadas das universidades federais?


O Czar da economia diz também que vai acabar com o bolsa empresário, com as desonerações e subsídios. Afirma que empresário no Brasil virou rentista, que se quiser ganhar dinheiro vai ter que voltar a empreender. Critica a conta com os juros da dívida.


Segundo o futuro ministro, o Brasil paga “o absurdo de 100 bilhões de dólares, um Plano Marshall, uma reconstrução da Europa por ano”. Em seguida vai até a sede da Firjan e anuncia que vai cortar até 50% dos bilionários recursos do Sistema S.


Bolsonaro diz que ser patrão no Brasil é “muito difícil”. O que os pequenos e microempresários acham disso? O país possui cerca de 7,7 milhões de MEI’s, microempreendedores individuais. Claro que boa parte é a máscara do desemprego e do subemprego, da precarização nas relações de trabalho.


Suponhamos que cerca de 5 milhões estejam realmente envolvidos com pequenos empreendimentos individuais. Eles aspiram crescer? Contratar funcionários? A fala de Bolsonaro para este público é a de um louco?


No âmbito do enxugamento do Estado o repertório é vasto. Diz que vai acabar, por exemplo, com a EBC por que não pode gastar 1 bilhão/ano com uma programação que ninguém vê. Você assiste algo na TV Brasil ou em algum outro veículo da EBC? O povo assiste?


O presidente eleito avança em temas polêmicos como a revisão da reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Os militares, que conhecem bem a região, vivem repetindo que o índio pede educação, saúde, internet e não o isolamento quase sinônimo de esquecimento.


Críticos das ONGs internacionais que infestam a Amazônia – muitas delas acusadas de biopirataria -, têm tudo para estabelecer ligação direta com os índios.


Existe uma máxima na história. Terreno não ocupado é perdido. Raposa Serra do Sol é uma região riquíssima em nióbio, ouro, diamante e outros minerais valiosos. Bolsonaro falou em pagar royalties aos índios. Os índios ficarão contra ou apoiarão? De que lado ficará a esquerda?


No campo das reformas, qual será a posição dos progressistas? Como resolver a questão do déficit crescente das previdências estaduais? Vai enfrentar as corporações de alguns poucos privilegiados que drenam boa parte dos recursos? Vai ficar apenas na negação?


É cedo ainda para dizer o que é discurso e o que será colocado em prática pelo novo governo. Algumas das medidas anunciadas apresentam contradições com os setores e interesses que financiaram a vitória.


Apesar disso, alguns economistas progressistas acreditam que podemos ter um período longo de juros e inflação baixa, favorecendo a retomada do crédito e do consumo, a geração de empregos e um crescimento da ordem de 3%.


Se o desastre apocalíptico desejado não vier e mantiver o discurso sectário, de negação histérica de tudo, o risco da esquerda ficar falando apenas para 20% do eleitorado é imenso. Pode acabar como McNamara. Conversando consigo mesma enquanto Ho Chi Minh e Lê Duân preparam o golpe final.

Ricardo Cappelli/é ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE)