17/01/2019 as 07:43

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Ou a autocrítica, ou a farsa



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A alternância no poder democrático dá-se sobretudo pelos desgastes, contradições e erros dos governos de plantão, os quais se acumulam ao ponto do rompimento. Em que pese o relativo capital de “benfeitor” detido por Lula junto a diversos segmentos sociais, a realidade brasileira pouco se transformou para muitos outros brasileiros nas últimas décadas, e a derrota da esquerda não caracteriza para esse enorme contingente uma perda ou retrocesso, mas um voto de confiança na mudança e no futuro, sejam quem forem a mudança e o futuro.


Em essência, pode-se afirmar que para muitos cidadãos os governos de esquerda no Brasil mudaram pouco o país – ou não o mudaram como seu discurso propagandeava – e é sobretudo esse legado que clama por autocrítica.


O capitalismo é a um só tempo grande produtor de riquezas e de desigualdades. Ao passo em que os avanços materiais e tecnológicos saltam aos olhos, sua concentração desigual entre os países e também dentro deles torna o mundo mais injusto e inseguro. A humanidade mantém-se aquém da posição moral e social mais elevada em que poderia estar.


Se a esquerda é a perspectiva e o movimento críticos da desigualdade, como afirmou Norberto Bobbio, então ela se torna um dos elementos civilizatórios necessários do nosso tempo. Uma esquerda com vitalidade e conectada com a realidade e com sua missão deve compor a paisagem democrática, juntamente com as forças de centro e de direita. (Pessoalmente eu sou daqueles que acredita no processo democrático, no equilíbrio, e sobretudo na contenção mútua e profícua entre as ideologias dentro de uma institucionalidade consistente e republicana.)


Como uma obrigação com o Brasil e seu futuro, a derrota nas urnas exige assim uma autocrítica da esquerda: dos partidos, movimentos e cidadãos que se alinham a esta ideia básica de luta pela igualdade. Contudo, infelizmente, as manifestações a que tenho tido acesso pela imprensa mostram atitudes sobretudo autoindulgentes, refratárias ao desafio intelectual e moral que se coloca tão concretamente¹.


Autocrítica não consiste em autoflagelação pública para regozijo dos adversários, mas análise, diagnóstico e proposição de novas estratégias de ação, capazes de produzir melhores resultados em termos sociais, econômicos, políticos, etc. Uma reflexão racional não para saciar desejos emocionais de apoiadores ou adversários, mas para governar diferente e melhor no futuro, quando a oportunidade se apresentar.


Autocrítica é o respeito pela razão e a autonomia do eleitor.

Ricardo de João Braga/professor e economista