11/10/2019 as 09:31

ARTIGOS

A Estrela Maior

Por Matheus Batalha Moreira Nery/Doutor em Psicologia pela UFBA e Professor da UNINASSAU

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“Algumas casas aqui não possuem telhado”, me falou o passageiro que sentava ao meu lado enquanto a aeronave se preparava para o pouso. Havíamos conversado por quase todo o voo. Ele era um engenheiro que trabalhava em uma obra complexa no Peru. Sua vida já incluía passagens por Angola, uma estadia longa nos EUA, e uma transferência, financeiramente vantajosa, para Lima, onde residia naquele momento. Desembarcamos pouco depois da meia noite e me deparei com o aeroporto lotado. Haviam pessoas em todas as áreas do desembarque. Estranhei a movimentação, mas pacientemente segui de fila em fila, passando pela alfândega e pelo pequeno guichê bancário para a troca de moedas estrangeiras. Quando deixei a área restrita para passageiros, encontrei um número ainda maior de pessoas no saguão de desembarque. Um motorista estava à minha espera e seguimos rapidamente até o estacionamento. Assim que me acomodei no veículo, lhe perguntei o que estava acontecendo. “Teremos show de Paul McCartney esta semana”, ele me respondeu e completou explicando que a movimentação ali estava anormal desde o início daquela semana. 

Aquela era uma viagem de trabalho em que participaria do comitê de seleção do Programa Fellow-Mundus. Passei as semanas anteriores me preparando para as reuniões que teríamos nos dias seguintes. Enquanto membro daquele comitê, teria a tarefa de julgar, em conjunto com meus colegas, as solicitações de bolsas de estudo de estudantes de diversos países, em distintas modalidades. O trabalho de preparação havia sido intenso, o que me fez entrar no avião com planilhas impressas, relatórios escritos e pontos críticos a serem discutidos, mas sem nenhuma programação cultural previamente estabelecida. Durante as semanas anteriores, não passou em minha mente, por um segundo sequer, que deveria verificar a programação cultural em Lima. Vaguei madrugada adentro em silêncio no carro que me conduzia ao hotel. Lembrei que, anos antes, meu pai havia me convidado para assistir ao show de Paul McCartney em São Paulo, de quem era fã incondicional. Eu havia terminado o tratamento quimioterápico e meu pai ofereceu comprar os ingressos para irmos justos ao concerto. “Não posso gripar”, lhe disse. O meu médico havia me pedido para ficar longe de aglomerações e um estádio de futebol lotado de fãs, como eu e ele, não parecia ser um local recomendado para quem buscava recompor sua saúde. Achei melhor não arriscar. 

No dia seguinte, seguimos, logo cedo, para a Universidad del Pacifico. O trânsito naquela manhã estava caótico. Os carros pareciam não respeitar nenhuma regra e andavam tão próximos uns dos outros que, em vários momentos, cogitei que era iminente uma colisão. Chegamos ao campus da universidade e, de imediato, ficamos surpresos com sua complexa infraestrutura. A instituição havia sido fundada no inicio dos anos sessenta por um grupo de investidores em parceria com um grupo jesuítico conhecido por “Sociedade de Jesus”, que participavam de suas principais decisões acadêmicas e administrativas. Logo que adentramos o primeiro corredor notei que as salas de aula possuíam diferentes modulações, que poderiam ser usadas para estratégias pedagógicas distintas, e que algumas delas possuíam janelas de vidro que permitiam uma visão ampla do que acontecia nos corredores. Percebi também, que o material projetado nas telas das salas de aula por que passei estava escrito em inglês. Percebendo nosso espanto, a nossa anfitriã, que dirigia a aérea internacional da instituição, nos contou que a universidade havia adotado uma estratégia agressiva de internacionalização. Para eles não bastava somente fornecer aos alunos boas opções de intercâmbio ou boas salas de aula, seguindo os moldes do que encontramos na Ásia, EUA e Europa, nem muito menos disponibilizar apenas o que havia de melhor em termos de tecnologia. O ponto central para eles era dar oportunidades aos professores de adquirir o máximo de conhecimento possível em como utilizar todas aquelas inovações em prol do desenvolvimento dos seus alunos. 

Tudo era calibrado para que os professores pavimentassem o caminho para seus alunos. Nossa anfitriã nos contou também que uma parte significativa do seu corpo docente já havia tido uma experiência acadêmica no exterior, através de um dos mais de 150 acordos bilaterais que a universidade possuía com instituições mundo afora. Cada decisão estratégica era pensada em face a possibilidade de dotar os seus professores com novos recursos pedagógicos. Para isto a formação e a qualificação docente eram preocupações constantes. Enquanto isso, no Brasil, nos preocupamos com as condições de infraestrutura que, em alguns casos, são lamentáveis, e, costumeiramente, esquecemos da necessidade de qualificação contínua de nossos docentes. O professor é o maestro que move o desenvolvimento humano de nossa sociedade. Portanto, as melhores oportunidades de aperfeiçoamento devem estar sempre à sua disposição. Um país que não enxerga seus professores como uma de suas melhores estrelas está fadado a um progresso lento e descontinuado.    

No meu voo de volta ao Brasil, vim acompanhado por fãs de Paul McCartney. Todos comentavam do concerto magnífico que eu havia perdido. Daquela vez, em vez de planilhas e documentos, carreguei em minha memória a certeza de que o trabalho que havia feito ali, revisando cada uma das submissões, teria um impacto positivo na vida daqueles estudantes. Lembrei que, certa vez, no caminho para a escola, ao ouvir uma canção dos Beatles, meu pai me disse “na vida, o que vale é tentarmos tornar melhor o que temos”.  

 

The Highest Star

“Some houses here have no roof,” the passenger sitting next to me told me as the aircraft prepared for landing. We had talked for almost the entire flight. He was an engineer who worked on a complex developing industrial area in Peru. His life already included travels to Angola, a long stay in the US, and a financially advantageous transfer to Lima, where he resided at that time. We landed shortly after midnight and came across a crowded airport. There were people in every area of the arrivals. I startled the movement but patiently went from line to line, through customs and the cashier for foreign currency exchange. When I left the passenger restricted area, I found even more people in the Arrivals Hall. A driver was waiting for me and we walked quickly to the parking lot. As soon as I got into the vehicle, I asked him what was going on. "We'll have Paul McCartney's concert this week," he answered and completed by explaining that the movement there had been abnormal since the beginning of that week.

This was a business trip where I would be on the Fellow-Mundus Program selection committee. I spent the previous weeks preparing for the meetings I would have in the coming days. As a member of that committee, I would have the task of judging, together with my colleagues, the applications for scholarships from students from different countries, in different modalities. The preparation work had been intense, which got me on the plane with printed spreadsheets, written reports, and critical points to be discussed, but without any previously established cultural programming. During the previous weeks, it did not cross my mind for a second that I should check the cultural programming in Lima. I wandered into the night, quietly, in the car that drove me to the hotel. I remembered that years ago my father had invited me to watch Paul McCartney's concert in Sao Paulo, who he was an unconditional fan. I had finished the chemotherapy treatment and my father offered to buy tickets to go to the concert. "I can't get the flu," I told him. My doctor had asked me to stay away from crowds, and a football stadium full of fans, such as him, and me, did not seem to be a recommended place for those seeking to restore their health. I thought it was best not to risk it.

The next day, we headed early to the Universidad del Pacifico. The traffic that morning was chaotic. The cars did not seem to respect any rules and were so close to each other that at various times I thought that a collision was imminent. We arrived at the university campus and were immediately surprised by its complex infrastructure. The institution had been founded in the early 1960s by a group of investors in partnership with a Jesuit group known as the "Society of Jesus," which participated in its major academic and administrative decisions. As we entered the first corridor I noticed that the classrooms had different modulations that could be used for different pedagogical strategies, and some of them had glass windows that allowed a broad view of what happened in the corridors. I also noticed that the material projected on the classroom screens I went through was written in English. Realizing our astonishment, our hostess, who ran the institution's international airline, told us that the university had adopted an aggressive internationalization strategy. It was not enough for them to just provide students with good exchange options or good classrooms, similar to what we found in Asia, the US and Europe, let alone provide the best in technology. The central point for them was to give professors opportunities to gain as much knowledge as possible on how to use all those innovations for their students' development.

Everything was calibrated so that professors paved the way for their students. Our hostess also told us that a significant portion of her faculty had already had academic experience abroad through one of the more than 150 bilateral agreements the university had with institutions around the world. Each strategic decision was designed given the possibility of providing their professors with new pedagogical resources. For this, teachers’ capacity building and qualification were constant concerns. Meanwhile, in Brazil, we are concerned about the infrastructure conditions that, in some cases, are unfortunate, and we usually forget about the need for continuous qualification of our teachers. The professor is the conductor who drives the human development of our society. Therefore, the best opportunities for improvement should always be at their disposal. A country that does not see its teachers as one of its highest stars is doomed to slow and discontinued progress.

On my flight back to Brazil, Paul McCartney fans accompanied me. Everyone commented on the magnificent concert I had missed. This time, instead of spreadsheets and documents, I carried in my memory the certainty that the work I had done there, reviewing each of the submissions, would have a positive impact on those students' lives. I recalled that once, on the way to school, listening to a Beatles song, my father told me "in life, what counts is to try to make what we have better."