16/03/2020 as 10:07

Entrevista

Afonso Nascimento fala sobre lançamento de livro

Ele também analisou a atual conjuntura política, que alguns classificam como um momento tenso: Afonso considera que “a frágil democracia brasileira” pode desabar a qualquer momento

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Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Estado e a Democracia, Afonso Nascimento lançou na semana passada o livro “Resistência e Adesão ao Regime Militar – Ensaios a partir da Comissão da Verdade de Sergipe”. Em conversa com o JORNAL DA CIDADE, o professor falou um pouco sobre as informações colhidas durante as audiências e estudos da Comissão da Verdade em Sergipe. Ele também analisou a atual conjuntura política, que alguns classificam como um momento tenso: Afonso considera que “a frágil democracia brasileira” pode desabar a qualquer momento. Confira a entrevista completa.

 

JORNAL DA CIDADE - Como se deu o processo de adesão ao regime militar de 1964 em Sergipe? Quem aderiu ao governo militar?
AFONSO NASCIMENTO - Existiram, por assim dizer, dois processos de adesão ao regime militar brasileiro. Em primeiro lugar estão os civis e militares que aderiram ao golpe militar desde a fase de preparação, da conspiração. São os adesistas de “primeira hora”. Em Sergipe, não foram poucos os empresários e fazendeiros, entre outros, que se organizaram para destruir a democracia. Muitos compraram armas, se preparando para tudo. Uma vez o golpe militar consumado, muita gente mostrou de diversas maneiras a sua lealdade ao novo regime instaurado. É preciso dizer, antes de continuar, que os regimes políticos de exceção são janelas de oportunidades para todo o tipo de gente, até porque novos espaços profissionais aparecem ou requerem mais quadros. Em Sergipe, como no Brasil, o patronato e outros setores das elites sergipanas fizeram questão de tornar público o seu apoio ao novo regime. Um exemplo dessa adesão partiu da classe política, que aderiu esmagadoramente ao partido dos militares, a Arena, tornando dificílima a tarefa de fundar o outro partido consentido, o MDB. Penso que a adesão do vice-governador Seixas Dória é outro bom exemplo, pois apesar da tensão política reinante ele podia muito bem renunciar à oferta dos militares para que ele fosse governador. Enquanto bacharel em Direito, ele sabia muito bem que não assumiu como vice-governador, pois o que havia era uma ordem jurídica e política quebrada. Ele assumiu como interventor dos generais para terminar o “mandato”. Ele não deixou passar a oportunidade.

 JC - Os adesistas foram beneficiados de alguma forma?
AN - Os adesistas se beneficiaram de muitas formas. Por exemplo, ganhando postos de governador e prefeito, empregos em empresas públicas, promoções na máquina estatal, secretarias etc. Muitos adesistas se tornaram dedos-duros voluntários, ao lado de outros que se tornaram profissionais etc.
 JC - Quem foi contra o governo militar em Sergipe e o que esse posicionamento gerou em termos de consequências?
AN - Você vai me permitir não citar nomes. Muita gente perdeu empregos públicos, perderam promoções, não gozaram de facilidades bancárias, tiveram suas famílias prejudicadas, não puderam fazer concursos ou fizeram concursos mas não puderam assumir postos, não conseguiam atestado de bons antecedentes ideológicos para assumir empregos etc. Não foi à-toa que muita gente fez o cursinho Adesg, o equivalente a um certificado de lealdade ao regime, que abria portas e janelas em termos de empregos, posições, promoções, prestígio etc.

 JC - É verdade que a avaliação é de que em Sergipe a ditadura não foi tão “dura” assim?
AN - A repressão dos militares contra os brasileiros considerados “subversivos” foi a mesma em todo o país, mas cada Estado tendo a sua especificidade. Em Sergipe, os militares só não mataram sergipanos porque as oposições ao regime descartaram o recurso à luta armada. Os demais tipos de violência eles praticaram, como prisões ilegais, perseguições, espionagem, torturas etc. Como não havia muita diversidade entre os grupos que lutavam pelas reformas de base do presidente João Goulart e em seguida entre os grupos que faziam oposição ao regime militar, a violência dos militares recaiu especialmente sobre grupos pertencentes ao Partido Comunista, enquanto estudantes e pessoas de diversas origens profissionais. Até onde sei, somente em 1952 a Polícia Militar matou um trabalhador comunista chamado Anísio Dário, que, como outros comunistas, protestavam contra o fechamento do Partido Comunista no Brasil. A ordem para atacar os manifestantes partiu do general Tavares de Queiroz e do professor de Direito Monteirinho.

JC - Os defensores do regime militar de 1964 são hoje os apoiadores do presidente Bolsonaro? É possível fazer essa relação?
AN - É possível, sim. Muitos defensores do regime militar ainda estão vivos. São pessoas que estão na faixa etária dos 60 ou dos 70 anos. Houve o hiato democrático de 1985 a 2016 e estão bem vivos apoiando o golpe de 2016 e esse regime de Bolsonaro que está mais para ditadura do que para democracia. Além dessa velha guarda, existem novos grupos de várias faixas etárias apoiando, por convicção política ou por oportunismo, o governo (na falta de melhor termo) quase fascista de Bolsonaro. É sempre bom lembrar que o autoritarismo é uma fonte de oportunidades políticas e também materiais. Nesse exato momento, o país está prestes a cair no autoritarismo e não vejo as instituições políticas funcionando “em plena normalidade”.

JC - Sobre as manifestações previstas para este domingo, dia 15, qual é a avaliação do senhor?  É possível fazer algum paralelo com a marcha pela família de 1964?
AN - Sim, somente enquanto grupo de pressão. No primeiro caso havia uma pressão para depor um governo democraticamente eleito. Era um movimento saído da sociedade civil. No segundo caso, trata-se de um presidente que convoca uma parte da população para pressionar um Congresso eleito, para votar tudo o que ele enviar para a sua apreciação – e, por extensão, o mesmo vale para o STF, ou seja, deve aprovar as demandas jurídicas que são do interesse do presidente. O chefe do Executivo, além de estar cometendo vários crimes, está forçando a barra no sentido de instaurar uma ditadura.

JC - Ao realizar um protesto com foco em instituições como o Congresso e o STF, a direita toma para si um discurso que durante muito tempo foi da esquerda, que é a crítica a essas instituições?
AN - É possível classificar a esquerda em dois grupos – acrescentando que outras classificações são possíveis: tem a esquerda que não aceita o jogo democrático, para a qual as instituições democráticas são meios, enquanto a outra esquerda vê essas instituições como fins, quer melhorar o desempenho, e busca a transformação pela via democrática e pelo estado de direito. A direita que irá às ruas pedir o fechamento do Congresso e do STF, sim, ela se parece a extrema esquerda, que aliás tem estado bem comportada. Mas a direita vai além. Ela quer a destruição das duas instituições citadas. Seu objetivo é um só poder, uma ditadura. Na democracia é normal que haja negociações, choques, acordos etc. O governo de Bolsonaro nunca investiu na construção de uma base de apoio parlamentar. O resultado é isso que está aí: mais uma crise do presidencialismo de coalizão. No quartel, pode ser hierarquia e disciplina, enquanto na política tem que conversar, aparar arestas, negociar etc. Não sabendo fazer isso, o que quer Bolsonaro? Jogar uma parte da população contra o Congresso e o STF.

JC - A democracia está mais uma vez em risco?
AN - Sim, a frágil democracia brasileira corre o risco de desabar a qualquer momento. Podemos dizer que o Brasil tem dois “presidentes”, todos os dois igualmente irresponsáveis. O primeiro “presidente” é o ministro da Economia, que segue a cartilha neoliberal ao pé da letra e não dá a menor importância se a maioria dos brasileiros é prejudicada. Os políticos do Congresso, mesmo com uma composição conservadora, percebem, menos mal, o exagero do radicalismo econômico de suas medidas e tornam as decisões menos radicais. Como se trata de um governo escancaradamente dos empresários para os empresários, naturalmente esse patronato não tem reclamado. Mas eles bem que poderiam dizer: “Calma, pessoal! Vocês estão exagerando!”. O segundo “presidente” é Jair Bolsonaro, uma pessoa extremamente vulgar, grosseira, tosca, rude, que ofende a sensibilidade de pessoas de todas as classes. Esse senhor é como um papagaio que decora e repete as frases que diariamente fala para a mídia e para os brasileiros. Ele não tem projeto de nada para o Brasil. O que pode querer como projeto de sociedade um político admirador de Hitler, Mussolini, Trump, Olavo de Carvalho, coronel Ulstra? O seu sonho é implantar uma nova ditadura no Brasil, completamente servil aos interesses norte-americanos. Em linguagem de caminhoneiro, o país está em uma “banguela” em direção a um regime autoritário. Esperemos que brasileiros, civis e militares, nacionalistas e democratas, ponham um freio nesse processo de desmantelamento da nossa democracia.