02/12/2019 as 08:26

FALTAM OPORTUNIDADES

Quem dá emprego as travestis?

Associação Nacional de Travestis e Transgêneros revela que mais de 90% estão na prostituição

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O mercado de trabalho anda difícil para milhões de brasileiros. Mas, quando se trata de transexuais e travestis, essa situação tende a se ser ainda pior. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) mostram que somente 4% desse grupo tem acesso ao mercado de trabalho formal. E o resultado disso é algo comum em ruas e avenidas das grandes cidades brasileiras: a presença constante de transgêneros na prostituição. Faltam oportunidades de emprego. Sobram esquinas.

Jéssica Taylor dos Santos tem 46 anos e, por 35, viveu na pele o estigma da exclusão social por ser travesti. "Aos 11 já estava na prostituição. E vivi das ruas até recentemente. A sociedade não nos oferece emprego. E, quando acontece, são para áreas nos bastidores, para nos deixar escondidas. É assim desde sempre. Somos excluídas de tudo. Não temos direito a uma educação, porque somos discriminadas nas escolas também. Então, sem estudo e sem apoio familiar, a única saída é a rua", lamenta.

Recentemente ela foi contratada por uma loja de um shopping da zona norte da capital. E, com emoção e sensação de reconhecimento, revela que esse é o seu primeiro emprego formal em toda a sua vida. "Tenho vivido outra realidade, pois, somente agora, consegui colocação no mercado de trabalho. Estou feliz com a oportunidade e tenho abraçado com muita garra. Quero mostrar à sociedade que temos capacidade e podemos, sim, ocupar todos os lugares".

Quésia Sonza tem 23 anos, ensino médio completo e, quando perguntada sobre sua profissão, diz com orgulho que é modelo, atriz e poetisa. Antes disso, desde os 17 anos, trabalhava em bares e restaurantes. "Sempre na cozinha, porque travesti precisa ficar escondida, né? O público não gosta de ver uma travesti na frente de um bar, como garçonete, balconista ou no caixa. Então, sempre teve que ser escondida. Nunca trabalhei de carteira assinada, sempre freelancer, mas em lugares onde nunca apareço. O que mais tem surgido ultimamente é ‘job’ como modelo fotográfica, no qual posso mostrar a face da travesti babadeira”.

Ela revela que, embora já tenha retificado toda a documentação, as contratações formais não surgem. E o motivo, segundo ela, está ligado ao fator: ser travesti. “Quando vou entregar currículos, de primeira, não falam nada. Mas você percebe o tratamento, principalmente quando percebem que nossa voz é grave. Fiz a retificação de meus documentos e, na hora da entrevista de emprego, que eles percebem que sou trans, dizem que as vagas já foram preenchidas. Na maioria das vezes, o fator ser transexual é a razão da não contratação. E, no meu caso, ainda tem o fato de ser travesti, preta e gorda. Porque não há referência para a gente. O fato de ser travesti inibe a minha contratação. As pessoas falam assim: ‘hoje em dia tem pessoas trans em frente de loja, atendendo o público, etc’, mas todas elas sofrem preconceito, porque as pessoas estão acostumadas a ver a travesti na rua, na noite. Conheço algumas meninas que estão trabalhando, com carteira assinada, mas todas elas têm a passabilidade, ou seja, se parecem com uma mulher cisgênero. Por isso que contratam. Quando não tem passabilidade, não contratam. No meu caso, é muito difícil”, detalha.

Ainda dentro desse aspecto, Quésia afirma que, devido à sua estrutura corporal, tem encontrado dificuldades, também, nas disputas de vagas para trabalhos artísticos. “Uma vez fui reprovada em um teste justamente por não me encaixar ao padrão de corpo que queriam. Eu sou gorda, as pessoas romantizam e marginalizam isso, mas eu sou gorda e sou belíssima assim”.

Sobre o assunto prostituição, ela é enfática. “A prostituição bate na porta da travesti 24 horas por dia. As pessoas não querem que a gente saia das ruas, da prostituição. Não querem que a gente tenha um trabalho formal. Eu penso todos os dias em me prostituir, porque preciso comer, pagar minhas contas. Só quero ter uma vida digna. E a única opção que existe é essa. É somente isso que nos oferecem. A vida de uma travesti na rua é correr perigo. E só queremos ter condições de comprar o nosso pão de cada dia”, acrescenta.

Exclusão

Embora faça parte de um dos grupos mais marginalizados do país, em que, de acordo com a Secretaria de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT), 76% das pessoas trans já sofreram algum tipo de exclusão no processo educacional, Ágatha Ludmila Santos de Jesus peregrinou por caminhos diferentes. A jovem de 21 anos faz parte dos 18% de pessoas semelhantes que conseguiram concluir os estudos – no caso dela, ensino médio completo e superior em vias de formação. Os dados são da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que afirma, com base em pesquisa do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), que o público sofre apartheid de gênero.

Contudo, mesmo sendo estudante de Ciências da Computação e tendo experiência profissional, Ágatha segue no desemprego há algum tempo. “Já estagiei em um colégio, quando era adolescente, e trabalhei como secretária em uma empresa. Depois disso, nenhuma nova oportunidade. Uma vez, fui chamada para uma entrevista de emprego e a recrutadora disse que fui maravilhosa. Fiquei com receio daquela abordagem, porque não conseguia entender se era preconceito, discriminação ou se ela estava falando sério mesmo. Mas eu nunca fui chamada para a vaga. É muito complicado a questão trabalho para nós, transgêneros. Vivemos diante de uma sociedade tão preconceituosa e discriminatória que é difícil conseguir emprego. Temos essa certeza de que a discriminação está em todos os lados. E, com o emprego, não é diferente. As pessoas são descrentes sobre o nosso caráter, nosso profissionalismo e capacidade, sobre a nossa convivência. As pessoas acham que, com nós, transgêneros, não existe diálogo. Porque eles nos marginalizam. Por conta disso, e também porque os recrutadores não são bem preparados a lidar com pessoas diferentes, é tudo bem difícil”, relata.

A jovem relembra momentos difíceis que passou no começo de sua identificação enquanto mulher transexual e revela que, por pouco, não tirou a própria vida. “Por várias vezes pensei em cair na prostituição. Sou de família protestante e, no começo, foi tudo muito difícil. Um dos meus desafios quando me descobri foi lidar com a rejeição, inclusive a minha própria aceitação. Era tão grande que pensei fazer besteira comigo. Eu não tinha um emprego e nem uma família que me apoiava, então não via saída. Um dos maiores fatores das meninas irem à rua, para ter o seu dinheirinho, está na falta de apoio familiar”.

Ainda segundo Ágatha, a ausência de oportunidades de emprego está atrelada à falta de acesso educacional. “Somos discriminadas, primeiramente, na escola. Não nos aceitam. Por isso muitas não conseguem concluir. Então, se você não tem estudo, não tem como conseguir um emprego”, afirma.

A pesquisadora Elayne Messias Passos, doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia, considera que “a construção de outras geografias morais de parte de um grupo extremamente subalterno e discriminado cujo olhar, justamente por ser das margens, por baixo, pode jorrar uma luz nova sobre as noções de cidade convencionais e hegemônicas”.

“Infelizmente, o que observo na pesquisa é que as oportunidades de emprego são inexistentes. Mesmo quando as pessoas trans têm a formação acadêmica que o mercado exige, esses indivíduos não são alojados no mercado de trabalho. Mas o problema começa bem antes, ainda na escola. A escola é um ambiente hostil para quem é trans. As piadas, as perseguições, a falta do uso do nome social, o preconceito, tudo isso contribui. Entrar na escola é difícil. A maior parte das travestis que ocupam as ruas são semianalfabetas, porque foram expulsas de casa muito cedo, então, o acesso à educação se torna ainda mais precário”.

Ainda de acordo com a pesquisadora, quando uma mulher trans consegue acessar o mercado de trabalho, acaba indo para áreas do subemprego. “Algumas conseguem ser cabelereiras, manicures e serviços domésticos. Mas há casos em que elas, quando precisam atender as clientes em casa, o marido nem as crianças podem estar presentes. Ainda tem o preconceito de associar esse público a alguma doença sexualmente transmissível. Com isso, só é permitido a elas o asfalto, as esquinas. O que lhes restam é trabalhar com o corpo e sabemos de todos os riscos que é estar nas ruas, trabalhando com prostituição. São riscos de violência, de roubo, de mortes. É uma questão histórica, cultural. É algo que está enraizado, infelizmente, e que impossibilita este pessoal de adentrar no mercado de trabalho formal”, acrescenta.

Invisibilidade

A reportagem do JORNAL DA CIDADE buscou informações com alguns órgãos públicos voltados à inclusão, à assistência social e ao trabalho, sobre números de empregabilidade desse público, funcionários no quadro e levantar dados sobre a colocação de pessoas no mercado de trabalho e, também, a propagação de políticas públicas voltadas às pessoas transexuais.

Questionamos sobre quantitativo de servidores efetivos e comissionados e número de cursos ofertados às pessoas trans, e os números informados comprovam todos os relatos de nossas personagens.

A Secretaria Municipal do Planejamento, Orçamento e Gestão (Seplog) informou que, na Prefeitura de Aracaju, são 6.064 servidores efetivos, 1.979 servidores comissionados, 164 efetivos com cargos em comissão, 1.239 requisitados/contratos, 641 estagiários, 4.484 servidores inativos. Desse total, apenas duas mulheres trans fazem parte do quadro, sendo uma conselheira tutelar, e outra, servidora efetiva, desempenhando as funções de secretária na Empresa Municipal de Obras e Urbanização (Emurb).

Com base nesses números apresentados, o JORNAL DA CIDADE procurou a Fundação Municipal de Formação Para o Trabalho (Fundat), que atua na capacitação e na colocação de pessoas no mercado de trabalho na capital sergipana, que revelou que, este ano, capacitou 8.633 pessoas em diferentes cursos voltados ao mercado de trabalho. Desse total, apenas cinco eram transexuais.

Com isso, procuramos a Assistência Social do município para obter informações que justifiquem o baixo número de inserção empregatícia para as pessoas transexuais. Conforme nota enviada pela assessoria de comunicação, o órgão “assessora e estimula a inclusão da das pessoas LGBT nas políticas públicas do Município, visando à promoção da dignidade e a garantia dos direitos dessa população”.

E, no âmbito trabalhista, informou que “atua em parceria com a Fundação Municipal de Formação para o Trabalho (Fundat) para a criação e ampliação da oferta de novas vagas em cursos e oficinas de qualificação profissional direcionadas a essa população”.

Na esfera estadual, o JORNAL DA CIDADE entrou em contato com a Secretaria de Estado da Administração (Sead), que informou que o quadro do Governo é composto por 32.791 servidores efetivos, entre estatutários e celetistas, e 2.615 comissionados. No entanto, quando questionada sobre a presença de profissionais transgêneros, a assessoria de comunicação do órgão afirmou que “não existe na folha a separação de transexuais e travestis. Só sexo masculino e feminino”.

Já o Núcleo de Apoio ao Trabalho (NAT), que é ligado à Secretaria de Estado da Inclusão, Assistência Social e do Trabalho (Seit), explicou que o Sistema Nacional de Emprego (SINE), criado pelo Governo Federal, ainda não possui recorte específico para cadastrar informações sobre identidade de gênero. E, embora seja ligado à Inclusão, o setor deu, apenas este ano, o primeiro passo para mudar essa realidade – através da inserção de um espaço para "informações sobre orientação sexual e identidade de gênero nos formulários de cadastro para os cursos ofertados pelo Núcleo".

A Referência Técnica para a população LGBTQI+ da Seit, Adriana Lohanna, justifica que, após isso, alguns cursos foram ofertados às pessoas transexuais. “Fizemos esse recorte já a partir da parceria firmada com o Instituto Aprecia, em que inclusive destacamos um percentual de vagas exclusivas para mulheres trans. Entendemos que é extremamente necessário termos esse levantamento e, por isso, estamos estudando formas de alcançar o público cadastrado via Sistema Nacional de Emprego, já que ele precisa ainda ser modernizado pelo Governo Federal”, revela.

Entretanto, das 320 vagas ofertadas a partir dessa nova política inclusiva, somente 5% foram destinadas às mulheres trans. E, em nota, a assessoria de comunicação da Seit alegou, novamente, que o "Sistema Nacional de Emprego (vinculado ao Ministério da Economia do Governo Federal) limita os campos de preenchimento às opções Feminino e Masculino, ainda não possuindo espaço para cadastro de informações relativas à identidade de gênero".

Por John Santana/Da equipe JC

||Fotos: Arquivo pessoal/Divulgação